quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

02/01/2008

Algum lugar, 02 de Janeiro de 2008

Amiga Ana,

Espero que você receba esta carta antes do dia 7. Camamboré é um lugar bem fim de mundo, e eu não confio tanto nas correspondências alheias. A vida inteira acostumado a mandar cartas no velho correio que fica em frente ao tal parque próximo da minha casa fez com que eu me familiarizasse com cada carteiro, cada caixa de correspondência que havia lá, cada selo.

Como foi a sua virada de ano? Para ser sincero, toda aquela minha rebeldia passou aqui em Camamboré. Não, eu não virei um conformista. Sim, eu odeio este lugar. Sim, os dias se passam como se todo dia fosse um longo e quente Domingo. Pelo menos eu tenho mais tempo para pensar. Afinal, não é para isso que Deus criou os Domingos?

Meu pai fez as malas para mim antes de viajarmos, talvez para se certificar que eu não ia levar os meus cigarros. Por alguma razão estranha (aliás, não é uma razão tão estranha, mas reze para eu me lembrar de escrevê-la no fim da carta), eu não senti vontade de protestar, causar confusão ou me rebelar. Isso é uma das poucas coisas que me dá prazer aqui em casa, e ainda sim contive todos os meus impulsos. (Cadê o Raul da Ferrugem Azul?) Aceitei veementemente. Eu não sei por qual razão. Eu tirei o dia 30 para esquecer que eu vivo e me trancar dentro de mim. Minha mãe estava empolgada para fazer a viagem, rever o tio Cláudio, vovó Fátima, os meus primos, a tia Ofélia, e todas as pessoas que não me despertam mais do que uma mera apatia (com exceção da vovó Fátima, eu vejo nela uma pessoa que vale a pena). Eu estava empolgado para ver vovó Fátima e o Manuel. Ele é o irmão que a minha mãe esquece que tem. Ou é o tio que eu me lembro que tenho. não sei.

Durante a viagem de carro, procurei dormir. Eu adoro dormir em viagens com a família, poupa eu ter que me envolver com eles. E eu tive um sonho engraçado. Sonhei com uma porta de aço no meio do nada. Era um portão imenso, pesado, grosso. Eu estava em frente a ele, querendo abrí-la, só que ele não cedia, por mais que eu o empurrasse ou esmurrasse. E meu pai e minha mãe passaram por mim, e não me viram. Abriram a porta com a maior facilidade e entraram na porta. Ao abrir a porta, havia uma luz muito brilhante do outro lado. Eles a fecharam antes que eu pudesse entrar. De repente, Luísa aparece, como se não houvesse ninguém ao redor e abre a porta. Elisa aparece em seguida. Marcelo e Pedro também. E todas as pessoas que eu conheço. E elas me abandonam em frente à porta de aço, e eu desesperado querendo entrar. Acordei sobressaltado, mas já em Camamboré. Chegando lá, houve aquela troca de amabilidades. Depois que falei com todos fui deitar no quarto de hospedes, alegando que estava passando mal. Fiquei pensando nas coisas boas de 2007, se é que houveram.

Se lembra que eu te contei que fiquei com pouquíssimas garotas? Elisa é uma delas. Nos conhecemos há muito tempo atrás, em uma festa de aniversário, já nem lembro. Ela sempre foi uma garota de atitude. Foi a primeira garota com quem eu fiquei, e isso foi quando eu tinha 14 anos. E temos um relacionamento muito engraçado. Nós ficamos, brigamos, não nos falamos, não dou a mínima, ela volta, nós ficamos, ad infinitum. Até que no 1º ano ela e eu conhecemos o Marcelo. E o Marcelo apresentou a ela um tal de Rafael, Ricardo, Roberto, algum nome assim. Eles ficaram, e deram certo, e namoraram. Ela perdeu a virgindade com ele, perdeu a paciência com ele pouco tempo depois e ela voltou a falar comigo. Mas só como amigos mesmo. Eu gosto dela demais como pessoa, mas ela é instável demais. Nunca teria dado certo. Além do mais, eu sou muito apático quanto aos outros.

E tem a Luísa... ela é linda, linda. Por dentro e por fora também. Especialmente por fora. Cabelos castanho-escuros, olhos cor-de-mel, bem morena, alta, e quanto ao corpo dela.. sem muitos detalhes, antes que você pense que eu sou um destes punheteiros ninfomaníacos. Basta saber que se você a visse, iria desejá-la na hora. Somando isso, ela ainda é atenciosa, carinhosa, engraçada, e eu sinto que ela gosta de mim. Só que eu tento controlar o que eu sinto, porque sinto medo de que aconteça o que aconteceu com a Elisa.

Uma coisa legal de 2007 foi eu ter descoberto a maconha. Foi através do Marcelo. Ele parou de fumar, porém não resistiu à tentação de fumar um cigarro quando a Juliana, sua ex, deu um pé na bunda dele e o trocou por uma garota que ela conheceu numa festa. Nessa ocasião, estávamos eu, Marcelo, Pedro e um cara cujo nome nunca consigo me lembrar, algo com W ou V, Válter? Wilson? Enfim, estávamos em um bar lotado de pessoas, de dois andares, com uma sacada lá em cima para os fumantes. O Pedro tirou o papelzinho; o Valter Wilson, a erva. Pedro enrolou, prendeu, acendeu e deu pro Marcelo.
"Hoje é de graça, priminho." Marcelo deu um trago com muito gosto, e ofereceu para mim. E eu aceitei, porque eu fico extremamente sugestionável com a voz dele. É quase uma coisa autoritária. E eu fumei, e tossi bastante. Tinha um gosto horrível.
"É pra prender, e não soltar a fumaça." E eu prendi. E eu me senti muito relaxado, quase como se eu estivesse flutuando. E depois eu comecei a rir de tudo que o Wanderlei Valério falava. Desde esse dia (acho que foi no fim de Fevereiro, porque eu estava quase voltando às aulas) eu apareço na casa do Pedro periodicamente para comprar maconha. Eu sempre quis saber com quem o Pedro consegue, e eu tenho certeza que é com o Wellington Venceslau.

No meio de todos estes devaneios que tive, eu dormi. E acordei com o tio Manuel do meu lado. Ele é esquizofrênico e fala sozinho. Eu gosto dele por ele não ser como todas as pessoas. Todo mundo mente e se contradiz. Todo mundo é hipócrita, é julgador (eu mesmo o sou, andei percebendo. Eu julgo os outros e odeio julgamentalismo) e ele é simplesmente ele mesmo. Fala o que vêm à cabeça e não se envergonha de ser louco. Resistiu a todos os tratamentos. Vive sob os tratos da vovó Fátima e sua aposentadoria, que não é muita, e é feliz. Ele estava com um estilete, uma lixa e um toco de madeira, lixando-a e cortando em alguns pedaços.

"Sabe, pensei que vocês nunca iriam vir aqui de novo."
"Mas tio, estivemos aqui não faz nem um mês."
"A sua mãe não gosta de mim, não é?"
"Nem um pouco, mas tudo bem. Eu não gosto dela também."
Ele me acertou com uma tocada na cabeça.
"Você ficou 9 meses dentro dela, merecia dá-la o respeito necessário. Não acha, filho?" E virou pra um retrato de uma criança que tinha na cabeceira do quarto. Ele jurava que era o filho falecido dele. Em algumas noites, você podia flagrá-lo tendo conversas profundas com a criança, quase como se estivesse educando-a. (Na verdade, a criança do porta-retratos era simplesmente a foto de papelão que veio com a moldura e vovó se esqueceu de tirar, ou deixou lá quando viu que o filho dela arranjou um amigo. Vai saber.)
"E então, Miguel, me diz uma coisa."
"Hm?"
"Você não era assim. Assim, assim, assim...." e ele ficou repetindo a palavra várias vezes. Uma vez ele me contou que quando gostava do som das palavras, ficava repetindo para sentir o gosto também. Entendeu porque eu gosto tanto dele? Ele é absolutamente pirado!
"...assim. Triste."
"Mas eu não sou triste, tenho uma vida boa."
"Soube que você repetiu de ano. O Figueirinha nunca repetiu de ano." (Figueirinha é o "filho dele)
"Bom pro Figueirinha, ele vai se tornar um cara incrível que nem você, tio. Mas eu tô feliz da mesma maneira, tenho meus amigos que me amam."
"Você tem algum objetivo pra sua vida, Figueirinha?" A voz dele ficou sombria, e por um segundo tive medo dele. Ele me encarou como se eu fosse o filho dele.
"Mas que pergunta, claro que tenho!"
"E qual é?"
Houve um silêncio constrangedor.
"Viu o que eu disse? Você não faz nada, não conversa com ninguém, não faz tantos amigos como fazia quando era pequeno, e tem esse desprezo até pelos seus pais que tanto te amam. Alguma vez você já pensou que poderia ter depressão, Figueirinha?"
"Mas é claro que n...", já ia gritar, quando eu vi que ele voltou a conversar com a foto. Por um instante, achei que era comigo. Que idéia ridícula, eu ter depressão.

Ele passou as próximas duas horas do meu lado conversando sobre a situação em Camamboré, onde todo vizinho da gente e todo vizinho dos vizinhos e os vizinhos dos vizinhos dos vizinhos etc. são algum parente em 3º grau meu. Aparentemente Vanessa deitou com Mateus, aquele Mateus, só que o Mateus estava namorando Natália e a mãe de Natália é irmã da mãe de Vanessa e rolou aquele muquifo. O tio Manuel fala como uma criança quando se trata em relatar histórias pra mim. Ele fala coisas como "... e daí Xandinha (mãe da Natália) ficou tão zangada, mas tão zangada que sacou uma espada a laser, ou era um rolo de massa?" Nem se eu fosse criança eu ia achar isso incrível e engraçado, mas como era o tio Manuel e você via sinceridade nos olhos dele, eu me sentia na obrigação de rir.

No fim do papo, ele já tinha terminado a escultura dele. Era uma tartaruga.
"Fique com isso, Figueirinha. É pra você se lembrar que às vezes a gente tem que meter a cabeça fora do casco, ok?"
E observei ele sair do quarto pra ir pra varanda da casa jogar milho pras galinhas no quintal.

Tomei café da tarde com a tia Ofélia e meus primos. Foi chato. O dia seguinte também não foi muito diferente, só que as palavras do tio Manuel ficaram na minha cabeça. E tentei parecer mais alegre e sorrir mais um pouco. Eu queria conversar com meus pais, só que ainda tinha aquele clima desagradável entre a gente. Então decidi chamar os primos (não todos, chamei o Nelson e o Thiago, que são os menos insuportáveis) para dar uma volta pela cidadola. Andei pelas ruas poeirentas, ouvi os casos deles sobre trabalharem na prefeitura do lado da cidade, sobre a moto que eles compraram, sobre as garotas com quem eles saíram e achei tudo aquilo um porre vindo deles, mas me forcei a rir e concordar das histórias deles. Tentei ficar sociável, mas vi que isso exigia um esforço muito grande. Daí a gente foi jogar futebol com os amigos deles num campo de areia que tem em um parquinho no centro de Camamboré (que é onde ficam os bares, as lojas e a parte menos ferrada do lugar), e eu fiquei como goleiro. Deixei escapar todas as bolas, praticamente. Eu e meus primos trocamos amabilidades ("Seu merda!", "Viadinho, chuta que nem homem!") e voltamos para almoçar.

À tarde, procurei dormir, mas não consegui. Fui pro quarto dos meus pais e tentei ser simpático com eles.
"Tempo bom, né?"
Eles se entreolharam com uma cara de que não sabiam do que eu estava falando.
"Pai, foi mal por tudo aquilo."
"Tá, tudo bem. Já esqueci. Tudo perdoado. Te amo, filho."

Essa última parte foi mentira, admito. Eu queria muito ter dito algo para meus pais, mas eu não sentia arrependimento ou vontade. Em vez disso, foi conversar um pouco mais com tio Manuel, que estava me contando algo sobre um periquito roxo que visitava ele toda noite, e chegou a noite. Comemos um pouco a ceia, e houve toda aquela palhaçada de família que finge se amar. Tomei meu banho e pus a roupa, que não era preta como eu queria que fosse. Meus pais me conhecem e deviam saber que eu ia fazer algo do gênero. Em vez disso, vesti verde e cinza. Verde é esperança, e cinza... bem, eu me lembrei da Luísa. Era a menor homenagem que eu poderia ter feito à ela.

Fogos à parte, o Ano Novo virou de uma maneira interessante. Todos na varanda poeirenta da casa da vovó Fátima, com banquinhos de praia, garrafas de champagne, banho de espuma, comilança de uva e estas coisas. Eu não liguei para ninguém, o sinal em Camamboré é uma merda.

E quanto a ontem? Bem, ontem foi um saco. O primeiro dia do ano foi uma espécie de festa à piscina, com churrasco, pagode e essas coisas que não combinam comigo. Eu joguei xadrez com o tio Manuel (ele é incrivelmente bom nisso), e depois fui desesperado atrás da minha Bíblia, até me lembrar que eu não arrumei a minha mala e não levei ela comigo. Merda, preciso me lembrar de guardar os cigarros em outros lugares.

Não sei o que vai ser do meu dia hoje, mas seu sei que eu devo ficar aqui até o dia 14. Se você receber esta carta em tempos, saiba que eu vou ficar sem escrever por mais um tempo e peço desculpas. Aqui não há muita privacidade (nesse meio tempo que estou escrevendo, os meus primos entraram aqui e quase pegaram a carta, fora que os Correios aqui são a uma van de distância e meia hora da "minha" casa), mas saiba que nestes 12 dias sem carta vou sentir saudades e tudo estará bem na minha vida (mentira, eu não aguento mais este inferno de cidade, todos os meus dias estarão recheados de tédio).

E desculpe por não comentar sobre a sua carta anterior, tenho medo de que alguém aqui leia e acho que no momento sua vida só me interessa. Mas logo logo escrevei para você, ok?

Abraços,
Miguel B.

sábado, 29 de dezembro de 2007

29/12/2007

Algum lugar, 29 de Dezembro de 2007

Amiga Ana (http://hodierna.blogspot.com),

Obrigado por responder às minhas cartas, e fico feliz que você as tenha lido até o final. Entendo o seu ponto de vista quanto a julgar os outros, e eu devo admitir que eu sou tão hipócrita quanto todos da minha família. Afinal, eu também não julgo?

Uma dica: desvincule-se logo da internet. É o pior dos vícios. Eu não entendo como alguém consegue perder horas do seu dia preso em frente a um monitor, quando tem tanta vida a ser vivida. Não sei se é porque foi criado em uma casa de ateus (com exceção da minha avó Fátima, que me deu uma bíblia de aniversário. Ela é muito católica, devota de São Miguel. Agora entende porque eu tenho um nome tão "legal"?), mas eu desenvolvi muito cedo a consciência de que tudo um dia vai acabar e que se eu não aproveitar o hoje, eu posso não ter tempo pra aproveitar o amanhã. Não que eu aproveite muito. Eu não sei se te contei, mas eu nunca namorei. Eu fiquei com pouquíssimas garotas na minha vida, e isso eu deixo para contar em outras cartas. Eu também não tenho muitos amigos. E eu não gosto de muitas coisas. Eu gosto de tocar violão. Gosto do meu quarto. Gosto do Pedro, da Luísa, gosto do Marcelo, do Leandro, da Elisa. Gosto de fumar maconha quando as coisas aqui em casa vão de mal a pior. Gosto da minha avó Fátima. E de escrever.

Principalmente de escrever, como você pode ver. Acho que a minha válvula de escape é a escrita. Escrever me faz esquecer da realidade, mesmo quando eu escrevo sobre a MINHA realidade. E falando em realidade, eu preciso parar de viajar (hoje estou sóbrio e não posso dar nenhuma desculpa).

As coisas ainda não amenizaram aqui em casa, e não sei se fico feliz ou triste. Por um lado eu amo os meus pais (merda de amor incondicional), só que por outro eu gosto de ver que não é só a minha vida que está de cabeça para baixo. Não é bom saber que todas as pessoas são humanas? Aqui em casa sempre houve uma cobrança de todas as partes para todas as partes de modo que todos parecêssemos perfeitos. Meu pai e seu emprego maravilhoso, minha mãe dona de casa, mas uma mulher dinâmica, sociável, talentosa. O filho... bem, esqueça, nunca me destaquei em nada.

Quando eu era pequeno fiz escolinha de futebol, sem bons resultados. Tentei judô, volei, karate, e nada. Eu não consigo praticar esportes que envolvam sociabilidade. Aliás, como eu insisto, não sei lidar com as pessoas. Elas que normalmente tentam lidar comigo, até perceberem que não vale a pena. Acho que a única coisa a qual sou grato a eles foi ter incentivado o hábito da leitura. Minha mãe passava muito tempo sozinha em casa, desde que a empresa pra qual ela trabalhava como secretária faliu. Então ela começou a ler muitos livros, e eu lia com ela. Acho que era um dos poucos momentos que nos entendíamos e eu achava que a vida valia a pena.

Hoje tive uma crise de nostalgia (culpa pelo meu comportamento, talvez?) e peguei um livrinho pra ler. Pequeno, sencilho, se chama Raul da Ferrugem Azul, da Ana Maria Machado. Já leu? Deveria. Fala de um garoto que um dia percebe que está todo embolorado de uma mancha azul , e nada tira estas manchas. Na verdade, as manchas são todos os sentimentos presos nele. A vontade de bater nos valentões do colégio, a vontade de falar palavrão, de ajudar os mais pobres, e todas as coisas que ele não conseguia fazer iam se acumulando na pele dele.

Há meses eu venho enxergando essa ferrugem em mim. Metaforicamente, é claro (exceto depois de fumar meu pileque: enxergo coisas até demais), mas eu sinto que tem tanta coisa presa que eu quero falar. E não consigo. Então hoje eu tirei o dia para desembolorar algumas coisas. Encontrei minha mãe na cozinha hoje, com o olhar lerdo, olhando pro horizonte. Eu sabia que ela tinha tomado alguma coisa. Lexotan, quem sabe. Bem, não importa... Eu senti uma vontade de pedir desculpas para minha mãe, embora eu não ache errado fumar; era mais um subterfúgio para não vê-la com os olhos vermelhos e a parte de baixo dos olhos roxa. É paradoxal isso que eu sinto, uma hora eu quero que meus pais morram e afundem em depressão, e que eu goste desse caos todo, mas no fundo eu sei que não deveria ser assim. Eu poderia ser indiferente. Poderia fumar maconha na frente deles. Oferecer, ironicamente, quem sabe? Arriscar levar uns tapas do meu pai. Ou ver minha mãe sofrer. Ao invés disso, eu cheguei para minha mãe e abracei ela.

Foi um abraço quase etéreo, porque eu sabia que minha mãe não estava ali. Eu mal sentia o corpo dela. E aí veio a pior parte:
Ela desvencilhou do meu abraço. E ainda disse:
"Me solta, Miguel Antônio."
Ela nunca me chama de Miguel Antônio.

A minha vontade foi de bater a porta na cara dela, como pede o protocolo, mas eu estava com muito peso no coração e bater portas não ia melhorar porra nenhuma. Eu resolvi sair e liguei pro Pedro e pro Marcelo. Marcelo é primo de Pedro. Ele não fuma maconha, não tem nada a ver com drogas e é um cara bem diferente do Pedro. O Pedro tem um jeitão mais na dele, e só fala o necessário. O Marcelo é aquele cara que fala de tudo, tudo. Fala tudo e fala demais. Mas não é o tipo de pessoa que você implora para calar a boca, ou para ter um câncer na garganta e ficar mudo. Ele meio que alegra o ambiente quando ninguém mais sabe o que dizer e fica um silêncio constrangedor. Aliás, ele é muito fã de um filme, chamado Pulp Fiction (eu não ligo), e tem um diálogo em que a mulher olha nos olhos do cara, e fala algo sobre como é importante quando duas pessoas se gostam, porque o silêncio que fica entre as duas pessoas é algo especial e sagrado. Ou eu devo estar confundindo os filmes e fatos. Isso têm acontecido com frequência.

Estava de rumo para a casa do Pedro, mas antes me encontrei com o Marcelo, que é praticamente meu vizinho de quarteirão, e pegamos o ônibus juntos. Marcelo falou sobre o Flamengo. Sobre a morte de Benazir Bhutto. Sobre os peitos de uma garota em pé no ônibus. Sobre o que ele faria com aqueles peitos. Eu ri. E eu falei um pouco da minha situação.
"Ah, cara, relaxa. Eles já estavam putos porque você repetiu o ano, e esse lance da maconha realmente deve ter fudido a porra toda pro seu lado, mas dá uns meses e tudo volta pros eixos."
O Marcelo é o meu pai.
"Ah, não sei. Eu já tô nos meus eixos..." e fiquei olhando pra cara do Marcelo, pra ver o quanto ele ia acreditar nisso. Ele riu, sencilha e despreocupadamente. Voltamos a falar do nosso Natal, dos presentes que (não) recebemos, e saltamos no ponto que dava quase que em frente à casa do Pedro. Era uma dessas casas emergentes, muito bonitas, em um condomínio fechado. Hoje o Pedro estava sozinho em casa, e até passou na minha cabeça fumar unzinho com ele. O Pedro fica bem falante quando ele viaja, mas ao invés disso chegamos lá, ficamos falando besteiras, paguei o que eu devia ao Pedro (e não era pouco, mas como somos amigos, ele me deu um desconto), e ele já estava enrolando um cigarro, quando o Marcelo deteve ele:
"Cara, deixa isso pra quando o Miguel não tiver aqui. Deu merda na casa dele."
"Ah, eu sei disso. Mas ele não está na casa dele. E ele precisa relaxar."
"Bem, eu acho que por ora eu posso ficar sem fumar", disse meio forçadamente. Eu queria fumar, mas eu obedeci à sugestão do Marcelo. Se ele dissesse para eu enfiar a cabeça na privada, eu acho que eu faria. Ele tem aquela voz que só os pais autoritários conseguem ter. Então, ao invés de fumar unzinho, ligamos a televisão, bebemos cerveja (mas não o suficiente pra ficarmos bêbados), e ficamos vendo um filme. O impressionante não era o filme em si (odeio esses filmes cults, mas o Pedro se amarra, então ele pôs um tal de Para Sempre Lília pra ver. Confuso demais) , mas a televisão. 39 polegadas, plasma, fixada numa parede do quarto dele, que era verde. Consegue imaginar isso? Um vendedor de maconha com um quarto de parede verde-criança?

O quarto do Pedro é enorme e eu poderia ficar dias detalhando ele. Mas só vou falar que o Pedro ficou deitado na cama dele, o Marcelo puxou a cama de baixo para assistir o filme e eu fiquei sentado em uma poltrona em formato de ovo. E me encolhi ali dentro, como um pintinho com medo do mundo. Eu sabia que quando eu voltasse para casa, as coisas ainda estariam uma merda. Minha mãe ainda estaria se drogando com Lexotan, meu pai ainda estaria fuçando minhas coisas, batendo as portas, dando com a mão em mim, mas pelo menos ali no quarto do Pedro, com meus amigos, me senti protegido. E até esqueci que o filme era meio triste, porque o Marcelo ficava fazendo comentários o tempo todo. Pessoas normais iriam mandar ele para a puta que o pariu, mas eu gostava disso. O Marcelo era um cara legal, não sei como tem gente que não gosta dele.

Voltei para a casa às 17h, e quando virei a chave do meu apartamento para entrar, me espantei. Fui farejado pelo meu pai, quase como se ele procurasse um cheiro que denunciasse o que eu fiz a tarde inteira.

"Aonde você esteve, seu maconheiro de merda?" Ele fedia a álcool.
"Eu fui dar uma volta com o Marcelo, ficamos vendo televisão na casa dele e jogamos Play 2."
"Esse Marcelo, não é um drogado que nem aquele seu outro amigo, ou é?"
"Não, pai, não." Me controlei para mentir e dizer que o Marcelo era um drogado da pior espécie, que ele curtia cheirar pó, injetar heroína e essas coisas que nenhum dos meus amigos faz, mas daí veio aquela merda de amor incondicional e senti vontade de ser honesto com meu pai. Ou semi-honesto, porque se eu dissesse que passei a tarde com o Pedro, eu ia ser ralado vivo.
Ele soltou um grunhido, e foi pra cozinha, beber mais, eu presumo. Me deitei na minha cama, liguei o som e pus um CD do Kid Abelha. Outra coisa que eu herdei da minha mãe. Adormeci com o CD rolando e, ao acordar, adivinha o que estava acontecendo no meu quarto?

"Pai, por que você está virando meus pertences?" Isso foi falado com a voz mais irônica possível. Mas não recebi nenhuma resposta. Ao invés disso, ele falou:
"Prepare suas malas, vamos passar a virada do ano em Camamboré."
Não, Camamboré não! Já ouviu falar dessa cidade? Pois é, se você ouvisse eu parava de escrever cartas na mesma hora e ia achar que era alguma armação de familiares pro meu lado. O lugar parece um limbo familiar, cheio de parentes chatos. O lugar parece ter 46ºC o ano todo. E o ar é quente. Sabe a atmosfera típica dos domingos, aquele ar quente, pesado, onde os segundos se arrastam e todo mundo fica recheado de apatia, tédio e irritação? Acredite, o ar de Camamboré é pior. E vou passar a virada do ano lá. O que significa que talvez eu não possa escrever cartas com freqüência. Dia 3 eu devo estar de volta.

Até lá, eu desejo um 2008 melhor para você. Meu ano foi estranho, e eu não pressinto que o meu 2008 vá ser diferente. Não sou supersticioso, mas na dúvida já decidi duas coisas:
1) Vou me vestir todo de preto na virada do ano.
Não é porque preto traz mudança, que nada. É porque minha mãe ficaria doidinha me vendo assim, com um visual mais punk na bagagem. Talvez ela associasse com um estereótipo maconheiro, quem sabe?
2) Ano que vem eu vou viver da maneira que me der no saco.
Cansei de guardar para mim as ferrugens azuis.

Carinhosamente, e até ano que vem,
Miguel

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

28/12/2007

Algum lugar, 28 de Dezembro de 2007

Cara Pessoa Amiga,

Desculpe estar escrevendo estas cartas sem você nem me conhecer direito. Mas sabe quando você precisa de um ombro para desabafar? Pois é, aqui estou eu, com uma dor de cabeça horrível, escrevendo para alguém que mal conheço, que deprimente.
Quem me deu seu endereço foi o ..., um grande amigo meu. Antes que você se pergunte, estudamos juntos e te conheço de vista. Sabe aquele garoto, de cabelo desgrenhado, cara de poucos amigos, que sempre sentou no fundo e andava cercado de gente mal encarada? Não, não sou eu esse. Eu sou aquele garoto que você jamais percebeu que estava no colégio, o garoto o qual você vai olhar nas futuras fotos de turma e se perguntar, "Quem era esse cara?". Pois é, eu tenho um nome, Miguel. E eu tenho muitos pensamentos que se passam na minha cabeça (a começar, como eu fui dar um mole terrível de repetir de ano. Mas isso eu deixo para uma outra carta) .

Te escrevo porque eu necessito desesperadamente de um amigo, mas não um amigo que se pareça com os meus. Eu preciso de alguém que tenha a vida nos eixos, mas que não seja julgamental. Odeio pessoas julgamentais, e deve ser por isso que eu nunca me misturei com muitas pessoas. Se você é do tipo de pessoa que olha pros outros e pensa "porra, olha como esse cara é, ele é um perdido, ele deve ser um merda", faça o gentil favor de rasgar esta carta e esquecer que eu existo.

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Algum lugar, 28 de Dezembro de 2007

Cara Pessoa Amiga,

Desculpe-me pelo jeito que escrevi a outra carta. Como escrevi, estou com dor de cabeça, confuso, cheio de problemas. Não sei lidar com as pessoas, nem com a minha vida. Esta carta deve ter chegado junto com a outra, então o que eu disse sobre julgamentalismo vale aqui: por favor, se você não for uma pessoa que vá me compreender, pare por aqui.

Se você quer ler o que eu escrevi, favor fazê-lo de coração aberto:

O ano está acabando, e eu pressinto que o ano que vem vai ser uma merda. Meus pais descobriram todos os meus lances com maconha. Eu deveria acreditar no que eles viviam dizendo para mim. Não, nada sobre maconha. E não me arrependo, o que me mantém lúcido até agora é o meu cigarrinho, poder esquecer deste mundo, abstrair e viajar nos meus pensamentos. O que eu deveria ter acreditado é que a Internet não é segura, ah não mesmo. Eles entraram no computador um dia e eu larguei meu ICQ ligado, e eu recebi mensagens de um amigo meu, o Pedro (ele não se chama Pedro: não quero que você descubra quem ele é), perguntando se eu não precisava de mais uns 20 gramas pros meus cigarros. Fernando (ele também não se chama Fernando), meu pai, leu tudo e sacou na hora. Isso foi na véspera do Natal. Neste dia, de manhã, saí com Luísa (ela realmente se chama Luísa, é uma pessoa fantástica, linda, falo o nome dela para você buscar conhecê-la) e conversamos a respeito de coisas.

Coisas como os amigos em comum, a vida, o que andamos fazendo, e ela sabe dos meus problemas. Sabe de muitas coisas. Ela me enxerga como quem olha um copo d'água: vê a água, transparente, só que ela ainda faz mais e sabe que naquele copo d'água existem também impurezas. E ela conversou comigo sobre o meu novo vício. Não que eu tenha tido muitos. E o diálogo foi estranho, eu não sabia se ela queria o meu bem ou o meu mal. Ela sabe que eu não suporto a minha vida, que eu não suporto a situação lá em casa, que eu não tenho futuro, que minhas notas são medianas e que na verdade, no fundo, sou um grandesíssimo filho-da-puta por saber dessas coisas e gostar disso tudo no fim das contas.
Enfim, todo o díalogo teve um ar de estranheza, mas o que mexeu comigo foi algo que ela me perguntou:
"Miguel, com tantas cores no mundo, por que você sempre escolhe pintar o seu mundo de cinza?"
"Luísa, eu acho que quem deveria parar com a maconha é você", e levei um tabefe no braço. Ela é uma criançona, mas eu amo ela.
"É sério, você sempre faz as piores escolhas, quando eu sei que no fundo você é muito mais." nesse ponto, os olhos dela já estavam marejados. Ela voltou a me olhar e perguntou uma última vez: "Por que?" Eu sentí um ímpeto de abraçá-la naquela hora e beijá-la, mas eu me detive. Eu sei que ela não gosta de mim. Somos só amigos. E não quero arruinar nada. Mas eu passei os 20 minutos seguintes olhando ela nos olhos. Acho que foi melhor assim. Demos uma volta num parque próximo do meu prédio, e não toquei no assunto. Voltamos às futilidades, tomamos um sorvete e a vida parecia legal.

Até que Pedro me ligou para perguntar se eu tinha recebido a mensagem, e perguntando porque eu demorei a responder no ICQ. Daí me veio a cabeça que eu deixei o computador ligado. Merda de vício em internet, pensei. E corri para casa, sem nem me despedir de Luiza direito (isso deixou ela bolada comigo, até agora ela está assim por eu ter corrido sem dar satisfação nem nada, ela me trata como se fôssemos namoradinhos às vezes e sinceramente não sei o que acho disso) para encontrar meu pai vermelho de raiva. Se minha dor de cabeça permitisse, eu ia detalhar tudo. O tabefe na minha cara. O choro da minha mãe. Os gritos. Minha mãe tomando cápsulas e cápsulas de Lexotan. As portas batendo. Tudo o que eu quero detalhar agora foi o que meu pai disse:
"Por que, filho, com tantas escolhas no mundo, você faz as piores, quando você pode muito mais do que é?"
Às vezes eu acho que essa frase me persegue. O tempo todo. Será que eu também fiz uma escolha ruim em estar escrevendo pra uma pessoa completamente desconhecida sobre minha vida? Pelo amor de Deus, não responda. Prefiro achar que agora estou fazendo a coisa certa. Tipo uma terapia ou algo do gênero, embora eu não acredeite em terapias.
Eu estou me perdendo, não é? Eu sempre fico assim após beber. Não ligue pra minha incoerência. Deixa eu voltar pro que eu estava falando: no momento em que ele me disse isso, meu mundo parou por algumas horas. E enxerguei tudo em preto e branco até ele bater com a porta do quarto e conversar com a minha mãe sobre isso tudo. Meu coração bateu mais devagar, e tudo o que eu pude fazer foi me trancar no quarto também, ligar o som, abrir a minha Bíblia, puxar o cigarro que eu normalmente escondo lá dentro e fumar unzinho. Welcome to my Christmas.

Eu me sinto mal por ter estragado todas as festividades. Não houve troca de presentes esse dia, não houve ceia, meu pai deteve a minha mãe de ligar para todos os parentes dela (afinal, para quê ficar falando da nossa vida para os outros? Temos que cuidar da nossa!), e foi isso. Estamos envolvidos por um clima pesado até agora. Minha mãe está fumando mais cigarros do que nunca, e às vezes tenho vontade de provocar um certo caos, soltando algo sobre más influências, mas me controlo. Pego meu pai constantemente revirando as minhas coisas, mas não falo nada a respeito. Já houvi algo sobre Narcóticos Anônimos ontem, quando houve um jantar na casa do meu tio Jorge (que não se chama Jorge. Eu adoraria chamá-lo de "tio Filho-duma-puta, mas tiraria o ar de veracidade desta carta), e pensei por um instante ter sido uma referência direta pra mim, só que na verdade foi com um amigo do Rafael (não vou mais falar que ninguém se chama do jeito que eu escrevo aqui, que eu to meio de saco cheio) que entrou na onda do tabagismo. Bando de conservadores filhos-da-puta, todos são fumantes na minha família, e eles falam dos adolescentes fumantes como se isso fosse um crime, um desvio de moral. Hipócritas filhos duma puta.

Hoje já tomei café da manhã com meus pais, óbvio que com um clima pesado. Ninguém sabe direito o que dizer. Nem eu, pra ser sincero. E se eu soubesse, eu também não diria. Eu não sei lidar com as pessoas, eu iria falar asperezas, mostrar pro papai Fernando que não, não quero ser advogado, mostrar pra mamãe Estela que não, não vou entrar jamais pra uma faculdade. O que eu quero da vida? Não sei. Eu ainda vou repetir o 2º ano para descobrir. Se houver um 2º ano. To meio cansado de tudo e de todos. Não discuti com meus pais nem nada, mas estou meio confuso com tudo que está acontecendo. O lance dos meus pais descobrirem a maconha. A Luísa puta da vida comigo. E por que eu fui encher a cara hoje?

Ah, sim, eu falei pra meu pai que iria sair com o Pedro, e precisava conversar com ele, e levei outra bifa dele. Aquela mão pesada. Gritos. E portas esmurrando. E todo aquele teatro. Novamente portas trancadas. Acho que é assim que as coisas funcionam aqui em casa, ninguém sabe lidar com os problemas em diálogo, não me ensinaram assim. Aqui em casa a gente se tranca, não só dentro do quarto, a gente se tranca dentro da gente mesmo. E eu me tranquei no meu quarto, bebi uma garrafa de licor de menta (o meu favorito) e deitei. Agora que despertei, liguei para o ...., nosso amigo, e ele me indicou o seu endereço, como te disse. Aí você me pergunta, por que eu to escrevendo carta? Eu não tenho Orkut, não tenho MSN, tenho ICQ para falar em privacidade com o Pedro, com a Luísa e outros amigos que apresentarei depois. Não gosto de telefone. E não me sinto à vontade. Eu sei que escrevendo estas cartas, me poupa o trabalho de ter que me expor. Ter que olhar cara a cara pra você e dizer as minhas verdades. Como eu disse, aqui em casa a gente se tranca. E eu prefiro assim.

Obrigado por ler esta carta, se você chegou até aqui. Não aguardo respostas, porque eu não as procuro. Eu só quero um ouvido amigo mesmo. Ou olhos amigos, já que você não está me ouvindo de fato. Espero que um dia a gente possa se encontrar. Por enquanto, prefiro manter esse epistolário cinza contigo.

Abraços,
Miguel